domingo, 6 de fevereiro de 2011

O álbum póstumo dele, Michael Jackson, para nós, os coveiros

“Monstro. Ele é um monstro. Ele é um animal.” Quem cospe essas palavras em forma de refrão musical, falando “ele é” como quem falasse “eu sou”, é um morto: Michael Jackson. Como era líquido, certo e inevitável (inevitável?), a Sony Music e o espólio do artista deram de presente ao mundo no Natal passado um disco “novo” do fantasma mais célebre do planeta. E, mesmo morto, o artista norte-americano não economizou versos para falar de como se sentia por dentro, pelo menos não nessa que é a faixa mais eloquente do álbum póstumo Michael.

“Por que eles nunca estão satisfeitos com você e com o que você oferece?/ você dá tudo a eles/ e eles ficam vendo você cair”, continua Monster, naquela confusão de pronomes “eu”, “ele”, “ela”, “você”, “eles” que constituiu a identidade de MJ pelos últimos muitos anos, talvez durante toda a vida dELE. “Para qualquer lado que você se vire há um monstro/ quando olha para cima você vê um monstro/ os paparazzi deixam você assustado como um monstro”, canta, de modo a nos confundir: o monstro é o paparazzi, algum “ele” à espreita, “você” (ou seja, nós) , ou ELE, Michael Jackson, em pessoa? Quem somos o monstro?

 



Em Hollywood Tonight, a personagem da canção (“ela”) é uma garota que sonha com a fama aos 15 anos, para, após conquistá-la, flagrar-se “aprisionada pelas câmeras de cada paparazzo”. A misteriosa “ela” volta no primeiro bloco da supostamente otimista (como defende no encarte o maluco que produziu o CD) Keep Your Head Up: “Ela está morrendo por dentro/ cada vez que seu bebê chora”. Subitamente, “ela” vira “eu” (“eu não posso nem respirar”), para em seguida se travestir num imperativo “você” (nós?, ELE?): “Mantenha a cabeça erguida/ não desista hoje”.
O dedo acusatório desesperado de Michael aponta ora para repórteres e fotógrafos, ora para o pai cruel e abusivo (sujeito sempre oculto – e sempre presente – em suas canções), ora para si, ora para o sistema que industrial que ele personificou como poucos outros. “Hollywood, olhe no espelho/ e me diga que gosta do que vê”, provoca na mesma Monster, numa frase que caberia não só à “patroa” Hollywood, mas a diversos outros sujeitos. Entre esses está ELE, Michael, que faz entrada triunfal em pessoa na sétima faixa, Breaking News, uma das várias a eleger a mídia como o monstro que nunca para de assombrá-lo. “Todo mundo quer um pedaço e Michael Jackson/ repórteres espreitam cada movimento de Michael Jackson”, sangra, antes de trazer de volta a terceira pessoa misteriosa e onipresente: “Ele quer escrever meu obituário”.

Tantos versos depressivos viriam a elaborar um disco profético, feito por um homem que estava mesmo para morrer, diria alguém. Bobagem. No mínimo desde Dangerous, de 1991 (lá se foram 20 anos), Michael não parava de compor mortíferas canções-avisos. Os exemplos são abundantes. Como continua a se queixar até agora a voz do morto, ninguém queria dar ouvidos a ELE para além do escândalo, do sensacionalismo e da exploração da miséria alheia. Garoto sem infância, Michael passou a vida inteira avisando que ia morrer Much Too Soon (esse é o nome da triste balada que encerra o disco). Já era mórbido em Thriller (1982), mas ali o morto-vivo era muito vivo, muito vivaz.

Em canções como as que sobraram para este assustador disco além-morte, mostra como se tornou mais e mais mórbido a cada novo passo – e como, por isso, se tornou insustentável, incômodo, indesejável para uma indústria que vive (vive?) de vender sonhos para e não pode se arriscar vendendo pesadelos tão escancarados como os que Michael, da Terra do Nunca onde os meninos se perdem, nunca mais parou de produzir. Não há acaso algum no fato de o disco começar pela meiga Hold My Hand, que comercializa o amor romântico de que Michael nunca desfrutou (pelo menos não em público).

Romances e mãos dadas à parte, como tornar vendável música que reclama do monstro-mídia o tempo todo, música que ousa usar o termo “obituário”? Não seria melhor e mais cômodo para todo mundo que ELE morresse? Talvez – mas não era só Michael o “problema”. A máquina-monstro que o gerou e sustentou há temos parou de ser azeitada. Quando Peter Pan morreu de fato, quebrou-se o espelho da maior madrasta do século XX.

O cantor não parecia saber, mas sua música sabia: “ele”, “ela”, “você”, “nós” (“eu”) etc. éramos, todos, imagens de um mesmo espelho. Sobretudo era ELE mesmo, pois o desprezo e o asco pop por Michael foi, também, reflexo da necessidade compulsiva de ganhar (e gastar) dinheiro que ele gerou para si e para muita gente que ainda está viva – à “nossa” custa, talvez pensasse quem o admiradou passivamente, apenas a “festejar” a fama e a fortuna alheias?

Michael morreu preservando os fãs, mas afinal não eram eles (“vocês”?) que compravam o sensacionalismo que nós (“eu”?), da mídia, produzíamos? Com o espelho quebrado, nem eu nem você, sejamos nós quem formos, podemos mais proclamar inocência diante do corpo e da voz do cadáver que ainda canta. “Ele” queria ver escrito o obituário, “ELE” conseguiu. Os coveiros continuamos aí. Mesmo textos como este, feitos para lamentar o leite derramado, já estavam previstos no roteiro que (não) acaba com a morte do popstar como o conhecemos no século XX.

Fonte:: MJMoonwalker

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